sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ancestralidade (Birago Diop)



Ouça no vento
O soluço do arbusto:
É o sopro dos antepassados.
Nossos mortos não partiram.
Estão na densa sombra.
Os mortos não estão sobre a terra.
Estão na árvore que se agita,
Na madeira que geme,
Estão na água que flui,
Na água que dorme,
Estão na cabana, na multidão;
Os mortos não morreram...
Nossos mortos não partiram:
Estão no ventre da mulher
No vagido do bebê
E no tronco que queima.
Os mortos não estão sobre a terra:
Estão no fogo que se apaga,
Nas plantas que choram,
Na rocha que geme,
Estão na casa.
Nossos mortos não morreram.


Ismael Birago Diop, natural de Senegal, além de poeta e contador de histórias, claro, escritor também, foi veterinário e diplomata. Que belo currículo, não?! 

Vida Nova (Dante Alighieri)



Tão discreta e gentil se me afigura
ao saudar, quando passa, a minha amada,
que a língua não consegue dizer nada
e a fitá-la, o olhar não se aventura.

Ela se vai, sentindo-se louvada,
envolta de modéstia nobre e pura.
Parece que do céu essa criatura
para atestar milagre foi baixada.

Ao que a contempla infunde tal prazer,
pelos olhos transmite tal dulçor,
que só quem prova pode compreender.

E assim, parece, o seu semblante inspira
um delicado espírito de amor
que vai dizendo ao coração: Suspira!

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Questão de Pontuação (João Cabral de Melo Neto)



Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Vou-me embora pra pasárgada (Manuel Bandeira)



Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que eu escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Este talvez seja o poema mais conhecido de Manuel Bandeira. Obrigatório no antigo segundo grau e creio que deva ser obrigatório nos dias de hoje também... Manuel Bandeira, o maior poeta brasileiro e um de seus mais belos poemas.

Carta de um Contratado (António Jacinto do Amaral Martins)



Eu queria escrever-te uma carta
amor
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma cara
amor
uma carta de confidências íntimas
uma carta de lembranças de ti
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta
amor
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levasse puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!

Tomei a liberdade de postar um poema António Jacinto do Amaral, um poeta anti-colonialista, cujos poemas são marcados pelos protestos...

domingo, 5 de agosto de 2012

A Bronca (Texto de Autor Desconhecido)



Era a primeira aula do dia, depois de um longo feriado. Como a maioria dos alunos havia viajado aproveitando o feriado prolongado, todos estavam ansiosos para contar as novidades aos colegas e a excitação era geral. 

O experiente professor entrou na sala e imediatamente percebeu que iria ter trabalho para conseguir silêncio. Com grande dose de paciência tentou começar a aula, mas a turma não correspondeu.

Com um certo constrangimento, o professor tornou a pedir silêncio educadamente. Não adiantou, a conversa continuou firme. Foi aí que o professor perdeu a paciência e deu a maior bronca que a turma tinha presenciado. Assim se expressou:

- Prestem atenção porque eu vou falar isso uma única vez - disse, levantando a voz.

Um silêncio de culpa se instalou em toda a sala e o professor continuou:

- Desde que comecei a lecionar, isso já faz muitos anos, descobri que nós, professores, trabalhamos apenas 5% dos alunos de uma turma. Em todos esses anos observei que de cada cem alunos, apenas cinco são realmente aqueles que fazem alguma diferença no futuro, apenas cinco se tornam profissionais brilhantes e contribuem de forma significativa para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Os outros 95% servem apenas para fazer volume. São medíocres e passam pela vida sem deixar nada de útil.

O interessante é que esta porcentagem vale para todo o mundo.

Se vocês prestarem atenção, notarão que de cem professores, apenas cinco são aqueles que fazem a diferença, de cem garçons, apenas cinco são excelentes; de cem motoristas de táxi, apenas cinco são verdadeiros profissionais; e poderia generalizar ainda mais; de cem pessoas, apenas cinco são verdadeiramente especiais.

É uma pena muito grande não termos como separar estes 5% do resto, pois se isso fosse possível, eu deixaria apenas os alunos especiais nesta sala e colocaria os demais para fora, então teria o silêncio necessário para dar uma boa aula e dormiria tranquilo sabendo ter investido nos melhores.

Mas infelizmente não há como saber quais de vocês são estes alunos.

Só o tempo é capaz de mostrar isso. Portanto, terei de me conformar e tentar dar uma aula para os alunos especiais, apesar da confusão que estará sendo feita pelo resto. Claro que cada um de vocês sempre pode escolher a qual grupo pertencerá. Obrigado pela atenção e vamos a aula de hoje.

Nem é preciso dizer o silêncio que ficou na sala e o nível de atenção que o professor conseguiu após aquele discurso. Aliás, a bronca tocou fundo na turma e teve um comportamento exemplar em todas as aulas durante todo o semestre, afinal quem gostaria de espontaneamente ser classificado como fazendo parte do resto?

O Melhor Amigo – Fernando Sabino

A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a ...